Pousada numa poltrona, ela lê.
Uma tenista, uma cavaleira, uma vamp e uma baterista entram numa biblioteca. Não se cruzam, não escolhem os mesmos pousios, não se conhecem. No universo de cada uma apenas existe o seu próprio corpo, os livros e a luz. Em cada momento estático e “À Luz das Raparigas em Flôr”, todos estes componentes estão incessantemente a transformar-se
O corpo que se mexe e transforma nesta biblioteca é a juventude. Uma juventude que não tem um passado limitativo nem um caminho definido, que nada tem que ver com os anos vividos. Este corpo, que surge com várias capas diferentes, explora todos os cantos da biblioteca, não se deixando intimidar pelas estantes ou pela grossura dos volumes, procurando, por vezes, o calor da luz e, por outras, abrigando-se na sombra. É a Humanidade jovem de Rohmer. É o centro da obra porque tudo depende deste corpo: as poltronas vazias, os livros fechados, a luz a queimar o pó e as roupas guardadas. É este corpo que dá o conhecimento e fim a tudo.
Assim, cada mundo que descansa em cada uma daquelas prateleiras aguarda. É uma espera a que já se habituaram: a espera de um leitor. E não têm preferências: pode ser uma tenista, uma cavaleira, uma vamp ou uma baterista. Querem é leitores. É o que estas quatro personagens descobrem ser, começando por ignorar os livros, mas, eventualmente, respondem a Proust, Hemingway, Moravia e a Pessoa, perdendo-se. Há uma transformação através da leitura, tão profunda que toda a pessoa muda, tornando-se num ser completamente novo: de tenista para cavaleira para vamp para baterista para … para … para … Cada leitura trará uma infinitude de mudanças e, consequentemente, de pessoas. E a luz censura os títulos e capas, obrigando o espectador a preencher esta biblioteca com a sua, com os livros da sua vida.
É esta luz activa e quase-invasiva que é o verdadeiro cenário destas fotografias. As personagens ora nadam nela, absorvendo e usando-a, ora se refugiam dela, deixando-a entrar e criar pontos precisos e dispersos de luz ou grandes manchas envolventes. É pela luz que o olhar das personagens varia de dominante, aquiescente e empático. É pela luz que a leitura é possível. É pela luz que três momentos de infinitude física se criam: o reflexo do fotógrafo no candeeiro de metal que se captura a si mesmo; a profundidade que escapa pela janela, deixando apenas um vislumbre de um guindaste a construir um mundo; e, ao fundo vislumbra-se mais livros, como se se tratasse de um espelho que captura este infinito de um livro que pode ser relido ou de uma pessoa em constante mudança.
Estas fotografias de João Marchante revelam-se com cada olhar, cada minuto que são contempladas. De Naturalista a Surrealista, passando por Impressionista e Expressionista, a figura humana surge na simplicidade e sem ser forçada, quase como apanhada desprevenida. Deixa-se reconhecer, o seu essencial, a preto e branco, sem fingimentos. Mas nada é deixado ao acaso. Tudo é posado.
Sebastião Calheiros Veloso