A viagem pelas páginas
A chegada a um lugar desconhecido implica sempre alguma prudência, alguma investigação, uma procura de conforto, uma procura de intimidade. Nesta sala, cheia de luz, uma viajante refugia-se nos livros perante a anfitriã fotógrafa. O que a trouxe e o que a faz partir? No fim, permanecem sempre três coisas: a luz, os livros e Ela, mas a maior de todas é Ela.
Neste “Solstício de Verão”, onde a luz é omnipresente e imutável, os elementos são celebrados no seu essencial e a viajante rejeita o que é acessório à medida que se banha luz. As botas que pisam a terra são descalças, o lenço que a defende da maresia é desenlaçado, a guitarra é desligada e arrumada e, por fim, quando de tudo já se despiu, todo o corpo se entrega ao ar. Tal como a biblioteca, a viajante precisa de tempo para se revelar à luz, para a aceitar, partindo sempre no final de cada leitura para mais uma viagem e voltando mais leve e disposta a mostrar mais e mais, até que revela tudo e, finalmente, escapa.
Antes de tudo, e antes até de qualquer outra viagem que a muda radicalmente, Ela lê. Procura outros que viajaram como Ela, que transformaram todos os seus cantos e esquinas, mas cuja essência não foi adulterada. De todos os incontáveis livros – incontáveis expedições – há apenas quatro que a atraem. Quatro que a obrigam a parar, a sentar, a partir e a transformar. Ao conhecer Fausto, quer ter o mundo nas mãos. Ulisses mostra-lhe o quão insignificante isso pode ser se faltar o essencial. Cada vez mais confortável nesta biblioteca, Eneias exorta-lhe que se entregue inteiramente. E, por último, Dante desenha-lhe o itinerário para que possa fazer a última e derradeira viagem. Refugia-se na leitura, ignorando a tenista, tolerando a cavaleira, entretendo a vamp, e acolhendo a baterista, esta outra Ela que habita aquele local e que a recebe de câmara em punho.
É esta anfitriã que conhece as musas e as revela. Tália tímida e sorumbática, Urânia impessoal e escondida, Euterpe rebelde e dominante, e Terpsícore simples e verdadeira. Filhas do Senhor dos Deuses, possuem este corpo para lembrar a humanidade que não há vidas estagnadas, sem luz ou estéreis. Cada vida é única mas salpresa com infinitas possibilidades e viagens. Ela é única, para sempre. Mas Ela pode ser elas. Ela tem de ser elas. Contudo, ao largar a mochila, os óculos, a guitarra e até o próprio livro, Ela, verdadeiramente Ela, funde-se na luz. Escapa. É a promessa de Bergman de uma humanidade livre. É um corpo que começa físico e carregado, humano, mas que se sabe mais, e mais, e mais, e mais até que não pode ser contido.
Estas fotografias de João Marchante extraem o divino do humano. São um convite a uma viagem ao interior da matéria humana, através da beleza do seu exterior. A preto e branco, com uma luz indirecta abrigada nesta biblioteca, as multiplicações d’Ela são as nossas, ainda que menos exteriores, sempre que sonhamos, lemos ou viajamos.
Esta é, também, a nossa viagem.
Sebastião Calheiros Veloso