Em 1990* João Marchante realizou um vídeo em que perseguia, com a câmara focalizada nas pernas, uma rapariga em passeio interminável pelas ruas do Porto. A perna captada em andamento num destes trípticos é retirada de um filme de Orson Welles em que acontece uma situação semelhante. Mas a posição de voyeur que a elas facilmente se reporta, adquire no conjunto destas sequências fotográficas uma coloração acrescida: a fantasia de quem vê, por ser também a de quem persegue, torna-se também a de quem vitima. E a culpa de ter visto torna-se medo de ter pensado em agredir (fotografar?).

O número de presenças nestas fotos alterna apenas entre uma e duas, aquela que age, mais escondida, e/ou aquela que é implicada pela acção da primeira, de quem se procuram melhores planos. Em vinte e quatro imagens, dezoito são centradas no rosto ou na metade superior da personagem, e se ver é a condição ideal do usufruto, como ser visto a condição da ameaça e do susto, é no olho (aqui trazido pela famosa sequência de Buñuel mas também pela de Michael Powell em que a vítima é levada a ver-se morrer no espelho) que a brutalidade perversa se centraliza e codifica. Ver por fragmentos, quando ver é imediatamente anterior a agredir e neste caso simultâneo de fotografar, é também mutilar, num imaginário que antecipa os momentos de horror. Daí a equivalência semântica da máquina fotográfica e do revólver apontados nos fotogramas de “Blow Up”, de “Natural Born Killers” e “Peeping Tom”, mas subjacentes a todos: a fotografia é uma usurpação, fotografar é “disparar”. A passagem do vídeo à fotografia neste trabalho está em grande parte relacionada com essa economia semântica: a de (dis)parar (sobre) o movimento de uma eminência.

O percurso artístico de João Marchante começa com o vídeo no final dos anos 80 e só há dois anos, com “Projecto Azul” (Porto, 1997) e “Peixe Fora d’Água” (Lisboa, 1998), toma por suporte a fotografia, a partir de imagens vídeo fotografadas no écran. O paralelismo de trabalho nos dois suportes, permite-lhe estabelecer actualmente uma relação enriquecida com o cinema: a passagem dos trabalhos em que encena, cria uma personagem, coreografa e dirige, como é o caso dos vídeos, àqueles em que apropria, tudo isso na fonte inesgotável de imagens que é a história do cinema, pode ser lida como o equivalente fantasmático da passagem de voyeur e agressor potencial a objecto de sedução- capturado pelas imagens, como os insectos pela luz, a vítima é o seu consumidor. Formas prosaicas de identificação e projecção com o universo de um filme e com personagens deslocam-no para a posição de “retratado”, seduzido e portanto fragilizado.

A sequência da rapariga na banheira sugere um flash back a um outro vídeo de 1990**, um longo filme em tempo real de um plano fixado numa personagem feminina também sentada na banheira. A abundância cenográfica criava aí uma surrealidade semi-festiva e absurda que fazia de um espaço de abrigo um lugar de fantasia lúdica. No filme de Peter Del Monte de onde retirou estas imagens, a mulher sentada na banheira estende o braço para o candeeiro que a vai eletrocutar. O espaço de conforto tornou-se um lugar da morte, talvez ela própria, afinal, uma promessa de tranquilidade, na condição de ser ainda fingimento/ficção como a “Noite Americana”.

Leonor Nazaré, Lisboa 28/9/1999

* “Provocação”
** “O Inquérito”