Pelo prazer de revisitar

João Marchante apresenta o seu novo trabalho fotográfico, Foto-Síntese, uma reflexão sobre os pequenos gestos diários e as pequenas coisas que temos em comum e nos tornam únicos em simultâneo a partir do ponto de vista de uma figura feminina.

O conjunto de imagens recria ambientes do quotidiano de uma rapariga sob a perspectiva distante e fragmentada tal como é absorvida pelo olhar do fruidor. Esta breve sequência de enquadramentos que faz lembrar os stills do cinema regista momentos de iniciação à idade adulta através do retrato de uma jovem que vive absorta entre o seu mundo reservado com os seus rituais e códigos próprios e o mundo lá fora.

Inspirado na vida trivial e na percepção visual de uma evidência que está diante de nós, mas que muitas vezes passa despercebida, estas dez imagens a cores de grandes dimensões habilmente encenadas pelo fotógrafo apresentam uma visão instável da paisagem humana expondo interiores, intimidades, sonhos e segredos, oscilando entre espaço familiar e espaço fantasiado.

Sensações ambíguas de prazer visual e tendências voyeurísticas povoadas por clichés e memórias surgem instintivamente. Os lugares comuns aqui apresentados incitam à reflexão sobre o silêncio que isola a eterna adolescente enfastiada e contemplativa, bem como os ritos iniciáticos próprios da idade transmitindo uma sensação simultaneamente familiar e distante. A figura sedutora de cabelos compridos, símbolo do feminino e da beleza é naturalista, contudo denota uma certa ambiguidade no limiar entre arquétipo e pessoal. O habitat da rapariga é simples e rudimentar em pormenores isolados e texturas. O mobiliário é básico e a pose descontraída.

Embora os ambientes sejam encenados, verifica-se um certo à vontade do sujeito em actividades banais e cenas domésticas repetitivas, habitando as várias assoalhadas do apartamento longe dos olhares indiscretos onde nos atrevemos a fazer coisas que não faríamos em plena luz do dia e onde podemos ser nós mesmos. A sensualidade das suas formas contrasta com a austeridade do espaço envolvente reduzido a um mínimo de objectos. A sua presença transmite uma sensação de segurança, mas também uma dose de ansiedade denunciadora de melancolia existencial. A eterna adolescente aqui representada como objecto de desejo e elevada à categoria de heroína mais se assemelha a uma anti-heroína moderna de identidade vulnerável reflexo da contemporaneidade. As expressões faciais transmitem ansiedade, mutismo e distância sobre o sentido da imagem, retratando a personagem de forma enigmática, contemplativa ou ausente deixando a identidade de quem a habita por desvendar.

Marchante obtém imagens que pelo seu tema seduzem e enlaçam, incitando o observador a reflectir sobre a relação entre natureza interior e natureza exterior do sujeito através de imagens que olham e devolvem o olhar.

Adriana Delgado Martins